quinta-feira, 7 de abril de 2011

'Amor é fogo que arde sem se ver'


'Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, muda-se o ser, muda-se a confiança; todo o mundo é composto de mudanças' – diz o poeta português Luís Vaz de Camões que, segundo curiosos, teria nascido em 4 de Fevereiro de 1524 ou 1525. Não se sabe ao certo, mas biografia de autor literário nunca foi importante.

O que interessa é que, apesar das mudanças do mundo, das novidades sem esperança, ficam as saudades do bem. E o bem se eterniza por si só, sendo reconhecido apenas por quem é do bem. Refiro-me agora ao poeta brasileiro Renato Russo, que em 1989 publicou a canção 'Monte Castelo', uma versão musical da I carta de São Paulo aos Coríntios e do seguinte soneto de Camões:

Amor é fogo que arde sem se ver,
É ferida que dói, e não se sente;
É um contentamento descontente,
É dor que desatina sem doer.
É um não querer mais que bem querer;
É um andar solitário entre a gente;
É nunca contentar se de contente;
É um cuidar que ganha em se perder.
É querer estar preso por vontade;
É servir a quem vence, o vencedor;
É ter com quem nos mata, lealdade.
Mas como causar pode seu favor
Nos corações humanos amizade,
Se tão contrário a si é o mesmo Amor?

Neste soneto, Camões define o amor baseado na contradição e explora duas figuras de linguagem: antítese e paradoxo. Como o objetivo aqui não é dar aula de teoria literária, se você ficar curioso de saber o que é soneto, antítese ou paradoxo, pergunte no comentário que eu respondo com prazer.

O que é o amor segundo essas 'definições' do poeta? Será que as coisas que vivemos no amor são exemplos dessas definições?

O fogo é algo que não se esconde, pois é visto e sentido, mas para o poeta 'Amor é fogo que arde sem se ver', ou seja, apenas o sentimos, mas não pelos sentidos. Nossos sentidos são limitados em relação às sensações ardentes do amor. Por isso, ele é comparado também a uma ferida cuja dor não é sentida ('É dor que desatina sem doer').

Lembro aqui daquelas pessoas que amam, sofrem, mas continuam amando. Lembro-me também de outro poeta português, Almeida Garrett que, no século XIX, escreveu: 'O excesso do gozo é dor', alegando que 'não há ser bastante para este gozar sem fim', legitimando assim o 'contentamento descontente', o fato de que nunca estamos satisfeitos no amor, mesmo que sejamos correspondidos, pois o amor 'é nunca contentar-se de contente'.

Outro aspecto do amor é o desapego próprio deste sentimento: 'É um não querer mais que bem querer / É um cuidar que ganha em se perder'. De fato, quem ama de verdade não quer nada além do bem do outro, mesmo que o bem do outro seja que você fique longe dele. No amor verdadeiro, você perde para ganhar ou ganha ao perder.

O amor é individual e acarreta a solidão, quer seja por necessidades não supridas, quer seja porque às vezes é preciso ficar só e, assim, as pessoas sentem-se num 'andar solitário entre a gente'.

No amor há liberdade e livremente se quer 'estar preso'.

O amor é servir ao vencedor, mas só há vencedor quando há uma batalha ou disputa. Amar, então, é colocar-se a serviço de quem vence esta competição. Não está dito que este alguém deve ser o outro. Às vezes, você vence e precisa colocar-se a serviço de si mesmo. Mas o fogo torna-se visível e a dor desatina sem dó nem piedade quando o vencedor é nosso rival. Assim, 'servir a quem vence' é f... deixa pra lá!

Amar é ser leal com quem nos mata. Jesus Cristo já havia dito - contra a lei do 'olho por olho, dente por dente' - que é preciso 'dar a outra face', perdoar e dar ao outro a oportunidade de ele não nos magoar mais, independentemente do risco que corremos de sermos magoados novamente. Isto é ser leal com quem nos mata.

Camões encerra com uma pergunta que, ordenada diretamente, fica assim: 'Mas como o favor do amo pode causar amizade nos corações humanos, se o mesmo amor é tão contrário a si?'

Como posso me tornar amigo de quem amo, se o amor me cega, neutraliza meus sentidos, não me satisfaz; se eu quero mais que o bem do outro, quero o meu bem que creio ser o outro; se mesmo acompanhado me sinto só; se quero sempre ganhar sem nunca perder e não sirvo a quem vence; se estou preso contra minha vontade; se minha lealdade só se manifesta como retribuição à lealdade alheia, não poderei amar ninguém, nem como amigo.

Digam agora se Camões não será eternamente atual?

Texto retirado da página:
http://www.orm.com.br/helderbentes/capa/default.asp?codigo=248645

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